Fruto do estudo que deu origem à palavra que partilhei ontem na minha igreja, cá está 'Caim, Saramago e Deus', tudo junto no mesmo saco!
É importante situarmos esta discussão que se gerou na passada semana acerca das declarações de Saramago. Tudo isto surge porque Saramago vê na história de Abel e Caim traços de ruindade de Deus e alguma injustiça no comportamento de Deus para com Caim. Mas será que isto corresponde à verdade? Será que é exactamente assim? Será que Caim não fez nada para que Deus não aceitasse a sua oferta? Estaremos perante um mero capricho de Deus?
O que aconteceu a Caim, importa dizê-lo, não foi fruto do destino, nem sequer das circunstâncias. Não é reportado que Abel e Caim tivessem tido quaisquer problemas anteriores a este. Não é reportado que Caim tivesse uma má natureza, por assim dizer. Até as actividades a que estes dois se dedicaram eram das mais nobres (pastorícia e agricultura) da época e sem grandes diferenças de estatuto entre si. Caim fez uma escolha e Abel fez outra. Essa foi a diferença, mas já lá vamos.
A atitude de Deus também foi inatacável. Limitou-se a responder à atitude de Caim. Colocar o ónus do que aconteceu nesta história em Deus é de uma injustiça tremenda. Abel trouxe o melhor do que tinha (as primícias, ou seja a primeira e mais importante parte do seu trabalho), enquanto Caim trouxe uma simples parte. A diferença da qualidade entre o que Caim e Abel trouxeram é feita biblicamente por omissão. Ao referir-se à oferta de Abel como 'primícias' e ao omitir a qualidade da oferta de Caim, é-nos dado a entender que Abel terá sido excelente, enquanto Caim apenas normal. E quanto ao que é a normalidade aos olhos de Deus, apenas refiro uma passagem: 'Mas visto que és apenas morno – nem quente nem frio – hei-de vomitar-te da minha boca!’ Está tudo dito, não está?
Há que assinalar como Caim transformou uma questão que era sua e da sua atitude, ou, quando muito, uma questão entre ele próprio e Deus, numa questão pessoal entre ele e o irmão. Só assim se explica que tenha partido para o assassinato do seu irmão.
Colocar em Deus o ónus desta história é desonestidade e incapacidade de interpretação do que está escrito. Caim escolheu. Mesmo depois de Deus lhe ter aberto as portas ('se fizeres o que é bom serás aceite e feliz'), mesmo depois de Deus ter colocado as cartas em cima da mesa ao dizer-lhe quais seriam as consequências de se deixar dominar pela maldade. Caim escolheu. Escolheu a oferta que deu, a 'normal' oferta que deu. Escolheu assassinar o irmão, mesmo sabendo que isso teria tremendas consequências. Escolheu não ouvir Deus nem os seus conselhos. Seguiu um caminho que geralmente leva à ruína: o não sermos ensináveis. Escolheu a falsidade ('irmão, vamos dar uma volta?') e a mentira (Não sei onde ele está, Deus! Por acaso, serei eu guarda dele?'). Caim fez uma série de escolhas erradas, mas o mais interessante ainda nem sequer é isso...
Deus decidiu proteger Caim. Ao medo deste em ser atacado e morto por outros povos (pergunta do milhão de €: que outros povos seriam estes? Então afinal o mundo não era só habitado por Adão, Eva, Caim e Abel por esta altura?), Deus respondeu com a promessa de que quem atacasse Caim teria um castigo sete vezes superior ao seu. Incrível. Parece-me um pouco da demonstração 'antecipada' da graça e do amor que caracterizam a natureza divina. Apesar de Caim ter nitidamente errado de forma consciente e premeditada, Deus escolheu protegê-lo da maldade que o próprio Caim iniciara. Que tremendo...
A única coisa de que trata esta história é da atitude. Da de Abel e da de Caim. De um Abel que trouxe algo de muito bom, e de Caim que trouxe apenas algo. Esse é o nosso desafio. Normalidade ou excelência? Apenas o que é requerido ou milha extra? O que é pedido ou tudo o que há em nós? São dúvidas que se decidem nas coisas do dia-a-dia. E, já agora, deixem-me reescrever aquele dito português. «Dos extravagantes rezará a História.»
A injustiça da parábola do filho pródigo
13 years ago
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